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Angra Jazz 2017

Leonel Santos

O Angra Jazz é desde há muito um festival de Jazz de referência, com uma programação cuidada que procura combinar o melhor do Jazz da actualidade com algum Jazz mais acessível, que tem em conta diferentes públicos, entre os irredutíveis jazzómanos e os leigos que apenas ocasionalmente ouvem Jazz. Uma outra atenção da direcção do Angra Jazz é dirigida ao Jazz nacional, desde a primeira hora presente no festival, e em especial ao Jazz insular, que vem promovendo e desenvolvendo consistentemente, e que se corporiza na Orquestra Angra Jazz e mais recentemente nas pequenas formações que da orquestra vêm saindo. A novidade na programação de 2017, como referi no texto de apresentação do festival, reside na inclusão de vários concertos em diversas salas de Angra, restaurantes, clubes ou a Biblioteca Luís da Silva Ribeiro.

E começando por aí mesmo, não tive oportunidade de assistir aos concertos do grupo da Sara Miguel, mas a noite do Wave Jazz Ensemble na Casa do Sal (a que se seguiu uma jam session) confirmou a consistência dos músicos, com um sólido conhecimento do repertório clássico e bons solistas, com Paulo Borges (trompete) e Rui Melo (sax tenor) em evidência, mas também o convidado Paulo Carlos, um ex-angrense e ex-miguelense recém regressado à orquestra. Igualmente bem esteve a secção rítmica: Antonella Barletta, Paulo Cunha e Nuno Pinheiro. A inexperiência, da Casa do Sal, dos músicos e do público (nestas coisas das jam sessions), levou a que a sala não estivesse sempre nas melhores condições, mas também que a jam tivesse começado algo tarde; o que não obstou a que se tivesse assistido a uma boa sessão.
Os dois concertos dos Mano a Mano (André e Bruno Santos), que apresentavam o segundo volume do seu «Mano a Mano», realizaram-se em restaurantes, com um repertório limitado pelas características das salas, mas ainda assim interessantes e competentes – eles que são dois guitarristas experientes - e com um toque de irreverência, e com certeza experiências a repetir e a explorar, de forma a levar o Jazz a toda a cidade.

Orquestra Angra Jazz
A noite de quarta começou, como é hábito, com a Orquestra Angra Jazz. Dirigida em exclusivo por Claus Nymark (e Pedro Moreira como «simples» saxofonista), a orquestra confirmou o progresso que lhe temos vindo a assistir, num repertório exclusivamente clássico; com energia, com a secção rítmica a necessitar trabalhar talvez os tempos lentos onde se revela mais pobre, mas com alguns solistas em ascensão, dispensando até as tradicionais intervenções mais descomedidas de Claus no trombone: Paulo Borges, Rui Melo, Antonella Barletta, Rodrigo Lucas, de novo, e ainda Sara Miguel, uma cantora de Jazz «natural» que tem a Ella Fitzgerald como modelo, muito assertiva, e que apenas tropeçou no último tema, o «Sweet Georgia Brown», e devido à letra que revelou não conhecer bem. Mas esteve bem em «I Got Rhythm» ou em «Honeysuckle Rose». 
A orquestra esteve sempre bem, com um repertório que recorreu bastante a Thelonious Monk: «Bemsha Swing», «Round Midnight», «Epistrophy», «Let´s Cool One» (e senti apenas os arranjos para os temas do Monk sempre excessivamente burilados, retirando-lhe a angulosidade que lhe é peculiar), mas também «Lady Bird», «A Night in Tunisia», «Time After Time» ou o já referido «Sweet Georgia Brown».
E é claro que a Orquestra Angra Jazz é hoje já uma referência entre as orquestras nacionais.

Baptiste Trontignon & Minino Garay
O duo do pianista francês Baptiste Trontignon com o percussionista argentino Minino Garay trouxe ao AngraJazz uma música de fusão, um «etno-jazz», que se revelou eficiente e saboroso. Trontignon é um excelente pianista e a sua interpretação solo de «The Nearness of You» foi belíssima. Por outro lado Garay é um percussionista relativamente comedido no colorido (que é apanágio dos percussionistas), mas assertivo nas marcações rítmicas, basicamente um trabalho de escovas nas peles e os chocalhos da perna. Houve um pouco do ambiente retro do Milton Nascimento, um tango de Carlos Gardel «Sus ojos se cerraron», o «America» do West Side Story, a pimenta do Hermeto Pascoal e os ostinatos do piano que pareceram evocar Keith Jarrett.
Coesão e uma música muito apelativa a ganhar os aplausos do público sem esforço.

Charles Tolliver Tentet – Celebrating Thelonious Monk Centennial
O bebop chegou a Angra na quinta-feira pela mão de Charles Tolliver na evocação da música do concerto orquestral de Thelonious Monk de 1959 no Town Hall (New York). O projecto de Tolliver pretende ser a rerodução fiel do concerto de Monk, onde esta experiência orquestral é excepção.
Tratava-se pois, também, de observar a fidelidade do tentet Tolliver à música de Thelonious Monk, e não a sua recriação. E nesse sentido, a substituição de última hora do pianista Stanley Cowell (o pianista de Tolliver de longa data, por motivo de doença) por Kirk Lightsey, não resultou a mais acertada, pois que se Lightsey é um pianista fluente, e que conhece o repertório de Monk de olhos fechados, o seu ataque no piano é o oposto do preiteado, mais veloz, mais lírico e mais rendilhado; ao contrário de Monk, pesado e parcimonioso.
A orquestra era basicamente constituída por jovens músicos, embora alguns deles já conhecidos de um público mais restrito, como o saxofonista alto Todd Bashore e o trompetista Josh Evans, duas verdadeiras feras, com intervenções espectaculares, enquanto a maioria da orquestra se mantinha muito fiel à estética bop, uma bateria Art Blakey, um contrabaixo clássico mas fluente, um sax tenor muito contido, um barítono a replicar Pepper Adams. Repertório exclusivamente Monk, pois, a respeitar o célebre concerto, «In Walked Bud», «Monk’s Mood», «Friday the 13th», «Crepuscule With Nellie» ou «Off Minor», entre outros.     
Diria que a opção de respeitar o original prejudicou a orquestra na convicção (e para ser coerente, os excessos algo teatrais de Lightsey contrariavam este apego ao original), sem deixar de resultar numa noite bastante apreciável. Mas a música de Thelonious Monk é intemporal e saborosa como poucas.

Ensemble Super Moderne
A música do Ensemble Super Moderne é uma música que qualificaria de «difícil», e claramente ela foge ao que se espera de um grupo de Jazz, até pela hipervalorização da composição em detrimento da improvisação.
Música muito séria, no meu entender mesmo o melhor que se faz em Portugal (o Ensemble ganhou o prémio da crítica para o melhor CD nacional de 2014), acabaria por dividir o público, que ainda assim não lhe regateou aplausos. Simplesmente ela não é de todo uma música epidérmica e, pelo contrário, exige do auditor uma especial educação musical, diria, mas também uma atenção que um evento deste tipo não ajuda.
Mas diria também que acontece com este grupo algo que acontece com a maior parte dos músicos e grupos nacionais, que não sabem comunicar com o público. Dir-me-ão que neste caso a comunicação era especialmente difícil, pelo tipo de música executada; mas o simples facto de os músicos não olharem com o público, não esboçarem um simples sorriso ou quase não falarem para o público, impede o estabelecimento da empatia com o público que, digo eu, um concerto público deve ter. É verdade que há músicos de Jazz portugueses que são bons comunicadores, mas a sua maioria não o são; e é verdade que isto acontece não apenas em Portugal, e o mesmo se passa com muitos músicos, principalmente europeus, e em especial com um determinado tipo de produtos musicais de maior complexidade. O segundo concerto da noite tornaria mais evidente esta diferença.
Angulosa, moderna, surpreendente, humorada, rigorosa, exigente, a música do Ensemble merece ser ouvida e, como escrevi no texto de apresentação, o público do Angra Jazz precisava e merecia conhecê-la.

Matt Wilson Quartet
Noite de grandes concertos, a sexta-feira!: - a noite acabou com a música, igualmente moderna, mas de características bem distintas, do quarteto de Matt Wilson. Associação de notáveis, todos eles igualmente compositores e líderes e músicos de excepção, levaram ao Angra Jazz uma música plena de energia e humor. Para os mais atentos, aqueles quatro nomes – Jeff Lederer, Chris Lightcap, Kirk Knuffke e o líder e baterista Matt Wilson-, são referências do Jazz contemporâneo, como confirmaram em palco. A bateria de Wilson, muito «aberta», com um som de caixa estridente, impulsionou o grupo com a mestria de um veterano, desde o primeiro tema (retirado do repertório dos Arts & Crafts, outro dos projectos de Wilson), impondo a dinâmica do concerto, investindo em paisagens que ora evocavam a música das Balcãs, ora invocavam Pee Wee Russell (a quem dedicaram um dos temas) ou os blues, o universo ellingtoniano ou Gillespie pelas mãos da corneta de Knuffke, o folclore klezmer e a poesia dita, com mudanças de ritmo súbitas, ora introduzindo dramatismo na música, ora beleza, ora alegria e movimento. O contrabaixo de Lightcap, que parte de Haden na gravidade e na omnipresença, opõe-se à bateria estrídula, complementando-a, enquanto Knuffke e Lederer respondem a Wilson na construção dos temas ou nas improvisações. Ainda antes do último tema, um convidado, Jon Irabagon, veio ao palco para o «Pee Wee Blues», certeiro mas comedido.
O repertório constou basicamente da música do último disco, Honey and Salt, inspirada na poesia de Carl Sandburg, mas também do disco precedente Beginning of a Memory e ainda de outros dos seus projectos. Uma grande noite!

Yilian Cañizares
Yilian Cañizares protagonizou o equívoco do Angra Jazz 2017, mesmo se ela soube obter o generalizado aplauso do público. Mas o que ela apresentou foi nem mais que uma versão aligeirada de música cubana. É verdade que a banda era constituída por bons músicos, e diria que pontualmente eles revelaram as suas qualidades enquanto executantes, ao contrário da líder, que se mostrou apenas uma incaracterística violinista e cantora.
Canizares é uma personalidade simpática, que possui em excesso o que critiquei pela ausência na actuação do grupo nacional, sem que a música que pratique apresenta alguma característica singular: vocalizações vulgares, violino excessivamente clássico e melodioso (contrariando a herança de Grappelli com que se apresenta), poesia e histórias a apelar ao sentimento do público.
Existe uma ligação da música cubana com o Jazz que remonta ao bebop, mas ainda assim, se à partida sabíamos que a música que iríamos ouvir apenas vagamente seria Jazz, faltou também personalidade cubana à música de Cañizares. Valeram-lhe os músicos, responsáveis pelos bons momentos da sua actuação.

Jon Irabagon Quartet
Jon Irabagon é um saxofonista superlativo, insuperável do ponto de vista técnico, criativo, versátil, impetuoso e profícuo. Apesar de não ter chegado ainda aos 40 anos de idade, Irabagon possui já um impressionante currículo de obras em nome próprio ou colaborações; impressionante não apenas no número, mas também na diversidade, na capacidade de tocar qualquer coisa com qualquer tipo de músico e em qualquer género, entre as formas mais clássicos do Jazz à vanguarda, com algumas inesperadas incursões em elaboradas fórmulas orquestrais. Para Angra, ele trouxe uma das suas formações mais clássicas, três instrumentistas que conhece bem, três virtuosos, de forte personalidade, em que se suporta para a construção deste projecto (que em CD integra também o trompetista Tim Hagans).
Nada é excessivo ou fútil, como poderíamos admitir de um quarteto de virtuosos (quantas vezes dados ao exibicionismo) e, pelo contrário, sente-se sempre uma enorme contenção, numa música rica de movimento que ora swinga ora parece estar prestes a explodir, ora se perde em melodias de perfume caribenho ora investe na história do Jazz, saltando em segundos para um Jazz «dissonante». E tudo isto acontece num tema, em instantes, sem que nos surpreendamos, tal a consistência do que ouvimos, tal a empatia do grupo, e também aqui sem que nos surpreendamos, porque nos damos conta da enorme personalidade de cada um dos músicos.
Música notável, a do quarteto de Jon Irabagon; mais um grande concerto para a História do Angra Jazz.

O Angra Jazz fez 19 anos, mas há muito confirmou a sua maioridade. O Angra Jazz fará 20 anos em 2018 e quer crescer ainda mais. Pois que cresça, porque crescer assim vale a pena.  

(Leonel Santos esteve no XIX AngraJazz a convite do festival)

Paulo Barbosa

Orquestra Angra Jazz
A Orquestra Angra Jazz abriu, como de costume, e sempre com toda a dignidade e todo o mérito, a série de concertos do palco principal da 19ª edição do festival angrense. Se se vinha tornando hábito reconhecer-se que cada nova atuação da Orquestra Angra Jazz vinha superar a da anterior edição do festival, tal só não poderá ser dito desta vez em virtude do sucesso de que se banhou a apresentação da “Far East Suite”, obra superior de Duke Ellington, na edição de 2016 – porventura o momento mais alto da década e meia de existência da orquestra.

Posto isto, não haverá como negar que, apostada em celebrar o centenário do nascimento de grandes figuras como Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, Tadd Dameron, Ella Fitzgerald e Lena Horne, a orquestra nos ofereceu mais um interessante concerto de abertura. Validando o persistente trabalho dos maestros Claus Nymark e Pedro Moreira e a correspondente dedicação de todos os seus membros, o aspeto mais digno de nota nesta apresentação é o de uma clara interiorização da linguagem do jazz por parte da orquestra como um todo, o que esteve em boa evidência em temas tão intrincados e exigentes quanto “A Night in Tunisia” (Gillespie), “Bemsha Swing”, “‘Round Midnight”, “Let’s Cool One”, “Epistrophy” ou “I Mean You” (Monk).

Na secção rítmica, cada vez mais confiante em todos os seus movimentos, destacou-se novamente o contrabaixista Paulo Cunha, sem que a pianista Antonela Barletta tivesse desta vez deixado de surpreender muito positivamente em várias ocasiões, nomeadamente nas peças da autoria de Monk. No final do concerto, havia motivos de sobra para celebrar, esperar e desejar a continuada evolução de uma orquestra que é já, e cada vez mais, um louvável exemplo na educação e formação na área do jazz em Portugal!

Baptiste Trotignon & Minino Garay
Seguiram-se Baptiste Trotignon e Minino Garay numa atuação em duo ao longo da qual Trotignon lançou do seu piano a trama musical sobre a qual pôde brilhar o percussionista argentino. Garay impressionou tanto pelo seu evidente virtuosismo quanto pela musicalidade que constantemente consegue extrair de cada pele, prato ou chocalho, bem como das mais variadas partes do seu corpo, como o peito, os pés ou o palato.

No entanto, se naquele seu papel de apoio ao brilharete de Garay, Trotignon várias vezes incorreu numa toada monótona e pouco atraente para qualquer amante do jazz, a sua versão a solo do standard “The Nearness of You”, confirmou que nos encontrávamos na presença de um excelente pianista de jazz e acabou por constituir, sem qualquer dúvida, o momento mais elevado de todo o concerto.

Charles Tolliver Tentet – Celebrating Thelonious Monk Centennial
No 2º dia do Angra Jazz, o decateto de Charles Tolliver ofereceu-nos uma recriação do concerto de 1959 de Thelonious Monk no Town Hall. O pianista Kirk Lightsey, que veio substituir Stanley Cowell, denunciou a sua escassa familiaridade com o material, lendo atentamente durante a maior parte do concerto e insistindo numa abordagem demasiado ligeira e suave para a geometria densa e angulosa da música de Monk; menos interessantes ainda foram as prestações de Patience Higgins (um saxofonista barítono de referência, aqui claramente abaixo de forma), do trombonista Stafford Hunter e principalmente do tubista Aaron Johnson, tanto em termos solísticos como no seu contributo para a leitura de vários temas, sendo em “Monk’s Mood” e “Evidence” que a secção mais grave dos sopros causou maiores dificuldades.

A noite foi salva, porém, por várias improvisações verdadeiramente brilhantes pelo saxofonista alto Todd Bashore e principalmente pelo trompetista Josh Evans – os seus solos sequenciais em “Off Minor” representaram o momento mais elevado do concerto –, bem como por uma ou outra interessante prestação pelo saxofonista tenor Stephen Gladeney, nomeadamente na leitura em quarteto de “Rhythm-a-Ning”.

Ensemble Super Moderne
A abertura da 3º noite do Angra Jazz coube ao Ensemble Super Moderne, um octeto oriundo do Porto, que apresentou uma das propostas mais arrojadas desta edição do festival. Não obstante a presença de excelentes solistas, a maior atenção desta formação está dirigida para a escrita, facto pelo qual urge louvar o gosto pelo rigor da composição e do arranjo incutido pelo maestro Carlos Azevedo desde os tempos em foi professor e mestre destes (ou de quase todos estes) seus atuais colegas.

O Ensemble Super Moderne recorre a fragmentos díspares do passado do jazz e de várias outras músicas – uma sonoridade cinematográfica esteve bem em foco no tema “Modern”, “Regui” é, obviamente, uma referência à música da Jamaica – e reorganiza-os de forma extremamente coerente, conferindo ao todo daí resultante, capaz de desafiar qualquer óbvia categorização, um significado e um poder de expressão muito próprios.

A música pode não ser fácil para todos os ouvidos, mas a plateia acabou por se render de forma visível (e audível nos crescentes aplausos) à qualidade deste projeto.

Matt Wilson Quartet
E a noite prosseguiu em grande com o quarteto de Matt Wilson, com uma performance do mais elevado nível, com todos os membros do grupo – o cornetista Kirk Knufke, o saxofonista/clarinetista Jeff Lederer e o contrabaixista Chris Lightcap – em apuradíssima forma, percorrendo em perfeita empatia um repertório excitante e diversificado, maculado apenas, aqui e ali, por alguma da redundância circular típica da música judaica. Mas mesmo nesses casos, a qualidade interpretativa ultrapassou as limitações colocadas pelo material temático.

A dupla Knufke-Lederer esteve sempre, tanto na sua interação como nas suas improvisações individuais, ao mais alto nível. Chris Lightcap foi um portento de segurança e um solista que nada deixou a desejar.

Wilson, em particular, confirmou-se como uma dos mais idiossincráticos e musicais bateristas da atualidade, tanto pelo perfeito domínio de uma enorme panóplia de recursos como pela sua facilidade melódica nas peles, sendo capaz de sugerir na bateria a melodia de qualquer tema – no seu solo em “Pee Wee Blues” (no qual tivemos a felicidade de contar com a participação de Jon Irabagon), o baterista fez-nos mesmo ouvir todas as notas dos 12 compassos que constituem o tema. Em suma, um belíssimo concerto a fechar a 3ª noite do festival.

Yilian Cañizares Quintet
O concerto musicalmente menos válido, embora muito aplaudido, do festival foi, sem dúvida, o do quinteto da cantora e violinista cubana Yilian Cañizares, que parece ter-se baseado no modelo de Esperanza Spalding, cujo sucesso já de si me parece carecer de justificação sob o ponto de vista estritamente musical. A banda soube fazer uma boa entrada em palco, mas até o agradável sabor latino que o arranque do concerto parecia anunciar iria resvalar, imediatamente após a entrada em cena de Cañizares, para uma música fácil, criativamente estéril e afastada da essência do jazz e até mesmo da grande alma da música cubana.

Pouco dotada como cantora, a líder revelou um domínio técnico básico do violino, mas, mesmo como instrumentista, recorreu sempre às soluções melodicamente mais fáceis e repetitivas, friccionando com toda a força o seu cordofone nos tempos mais fortes, sem qualquer swing ou sincopação e sem qualquer criatividade sob o ponto de vista harmónico/vertical nas suas improvisações (se é que as houve), de onde não poderia deixar de resultar uma toada monótona e dificilmente estimulante para um ouvido jazzisticamente habituado e educado.

Os momentos mais interessantes do concerto, foram, sem dúvida, aqueles em que, falando com o público entre temas, Cañizares apontou o dedo ao mundo machista em que vivemos e pelo qual todos somos responsáveis ou, pelo menos, sérios cúmplices. Foi essa a grande mensagem que ficou desta sua passagem pelo Angra Jazz e foi aí que lhe soltei o meu sentido e entusiástico aplauso.

Jon Irabagon Quartet
O concerto final, pelo quarteto do saxofonista Jon Irabagon, acabou por constituir, como, já era, aliás, de esperar, o momento mais alto desta edição do festival. O concerto arrancou em força com o tema “One Wish”, do álbum “Behind the Sky”, do qual saiu a maior parte dos temas ouvidos neste concerto.

Irabagon tinha já conquistado toda a plateia quando, no final da exposição do tema, recebeu o tipo de aplauso que no jazz se recebe, tipicamente, no final de um solo. De facto, o som do sax de Irabagon, que enchia em pleno a sala mesmo quando afastado do microfone, a sua articulação e todas as suas opções, mesmo quando não em improvisação, fazem dele uma das vozes mais majestosas da família dos saxofones – seja o tenor, o alto, o soprano ou o sopranino – das últimas décadas do jazz. Quando entra em modo de improvisação, Irabagon cresce ainda mais, como um tufão que nos enche os ouvidos e a alma em poucos segundos, mas que tem sempre mais e mais para dizer, mesmo quando possa parecer que já tudo havia sido dito.

E o mais impressionante é que basicamente o mesmo se aplica a cada um dos seus colegas de palco. Este grupo reúne, efetivamente, quatro dos mais brilhantes músicos do jazz de hoje, não havendo, da parte de qualquer deles, um único movimento, uma única escolha ou decisão, nem um único solo que não surpreenda e arrebate o ouvinte por completo. Toda a música é tocada a um nível insuperável – muitas vezes inacreditável –, sendo percetível um invulgar espírito de comunhão entre todos os músicos do quarteto, que fazem do palco um espaço muito especial de partilha musical, no qual, a todo o momento, cada músico ou todos os quatro podem levar a música para onde lhes apetecer e lhes fizer mais sentido. E porque o jazz deve(ria), por definição, ser isso mesmo, este foi, sem sombra de dúvida, o concerto mais especial e memorável desta edição do Angra Jazz, um festival que, por tudo o que ao longo dos ano nos tem oferecido, muito mereceu ter este como o seu concerto de encerramento. Já falta menos de um ano para a 20ª edição de um grande evento musical que merece vida eterna!

Jazz na Rua
Não poderia, finalmente, deixar de referir que o Angra Jazz apresentou este ano uma série de concertos paralelos que apelidou de “Jazz na Rua” e que incluiu sessões de divulgação para alunos de escolas secundárias.

Os concertos aqui incluídos estiveram a cargo do Wave Jazz Ensemble, do quarteto da cantora Sara Miguel (a que não consegui assistir) e do projeto Mano a Mano.

O Wave Jazz Ensemble, uma espécie de “núcleo duro” da Orquestra Angra Jazz, fez uma belíssima apresentação na Casa do Sal, sendo de lamentar apenas que, devendo dar lugar a uma jam session, a atuação se tenha alongado tanto. Quando vários membros do decateto de Charles Tolliver e André Santos finalmente se juntar para a jam, os vários músicos do grupo açoriano continuaram a surpreender e a revelar um nível apreciável na qualidade de improvisadores.

Assisti ainda a duas atuações de Bruno e André Santos, que em Angra apresentaram o Vol. 2 do projeto Mano a Mano, ambas com os dois destacados guitarristas madeirenses em apuradíssima forma e apostando num repertório variado, composto por originais de cada um e de ambos os manos, standards e clássicos da música brasileira, todos percorridos com extrema imaginação e marcados por um interplay revelador da enorme empatia musical que reina entre os dois irmãos.

(Paulo Barbosa esteve no Angra Jazz a convite do festival)

Jon Irabagon Quartet
Matt Wilson Quartet (+ Jon Irabagon)
Orquestra Angra Jazz

2 de Outubro de 2017

À hora que publico estas linhas o Angra Jazz iniciou a edição de 2017 há já alguns dias, experimentando uma fórmula que inclui uma série de concertos por músicos

Charles Tolliver

nacionais, em diversas salas e contextos inesperados. Os músicos convidados são o Wave Jazz Ensemble e o Quarteto de Sara Miguel, dois grupos saídos da Orquestra Angra Jazz, e o duo de guitarras de André e Bruno Santos, o «Mano a Mano». Os espaços para estes concertos são o café Verde Maçã, o Hotel do Caracol, o Cais de Angra, a Biblioteca Luís da Silva Ribeiro e ainda a Oficina d'Angra - Casa do Sal. Hoje à noite mesmo (terça 3) os irmãos Santos iniciam na Biblioteca Luís da Silva Ribeiro a digressão nacional de apresentação do seu mais recente CD («Mano a Mano Vol. 2»).

Antecipada de um dia, a programação do Centro Cultural e de Congressos é também acrescida de um concerto na sua programação tradicional. E tradicional não será, enfim, a programação de 2017, que prima pela diversidade, entre o Jazz mainstream, uma forte marca «etnográfica» e uma inequívoca modernidade.

Orquestra Angrajazz
Mas tradicional é o arranque (quarta-feira) com a menina dos olhos do Angra Jazz – a Orquestra Angrajazz, que tem vindo a crescer em consistência, liderada por Pedro Moreira e Claus Nymark. Aguardam-se mais solistas e mais repertório, de acordo com o que tem vindo a acontecer nos últimos anos.

Baptiste Trotignon e Minimo Garay Duo
O perfume etno manifestar-se-á logo no segundo concerto desse primeiro dia, protagonizado pelo encontro do pianista Baptiste Trotignon com o percussionista argentino Minimo Garay. «Chimichurri» (2016), o disco que ilustra o seu encontro, e que deverão tocar em Angra, cruza o Jazz inequívoco de Trontignon com o tango argentino, os ritmos latinos e um pouco do espírito flamenco que se revela nas percussões e no canto de Garay.

Ensemble Super Moderne

Charles Tolliver «Celebrating Thelonious Monk Centennial»
O regresso de Charles Tolliver a Portugal, à frente do seu tentet de sete sopros, contém em si o melhor do Jazz clássico. O tentet, que celebra o nascimento de Thelonious Monk (que faria cem anos em 10 de Outubro), pretende recriar um dos raros ensaios de Monk à frente de uma grande formação, o concerto do Town Hall, nota por nota (transcrito por ele mesmo), a que o trompetista assistiu com apenas 17 anos de idade, e que muito oportunamente será pois agora apresentado em Angra do Heroísmo, num dos que se prevê ser um dos grandes momentos do festival.
O Charles Tolliver Tentet «Celebrating Thelonious Monk Centennial» ocorrerá no terceiro dia do festival, excepcionalmente, e porque a sexta feira é dia de trabalho, esta noite haverá apenas um espectáculo, mas os noctívagos podem continuar a noite na Casa do Sal, onde pelas 23 horas o Wave Jazz Ensemble começa a tocar.  

Ensemble Super Moderne
Mas de grandes momentos será feito muito provavelmente, também, o terceiro dia do festival, que se inicia com um dos mais interessantes grupos da cena nacional, o Ensemble Super Moderne arrebatou em 2014 o prémio da crítica para o melhor CD nacional: a sua vinda ao Angra Jazz estava a tornar-se urgente. Colectivo de músicos e compositores, intransigentemente bem humorado e irreverentemente moderno, o Ensemble Super Moderne deverá apresentar em Angra alguns temas do seu novo repertório.

Matt Wilson Quartet

O terceiro dia completa-se com o quarteto de um dos mais elegantes, versáteis e requisitados bateristas da actualidade: Matt Wilson. E se é verdade o que dizem: «diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és», este é um quarteto verdadeiramente de excepção, já que os músicos que o compõem são também notáveis compositores e instrumentistas, que combinam um conhecimento da tradição a toda a prova, com a irreverência e ousadia da aventura da modernidade. Atenção pois para as prestações de Kirk Knuffke, Jeff Lederer e Chris Lightcap.
Matt Wilson deverá trazer a Angra, muito provavelmente o seu mais recente trabalho, «Beginning of A Memory», que eu diria simplesmente ter sido um dos mais belos discos editados no ano passado. 

Yilian Cañizares Quintet
O primeiro concerto da noite de encerramento do Angra Jazz 2017 poderá incluir-se na classificação do «etno-jazz». Um concerto algo excêntrico, dir-se-ia, para o festival, mas que deverá arrebatar os aplausos do público com facilidade, a avaliar pelo disco que a cubana Yilian Cañizares fez em 2015, «Invocacion», onde é claro o seu virtuosismo ou da banda que a acompanha, mas também o conhecimento da linguagem Jazz, numa fusão de universos que tantos frutos deu no passado.    

Jon Irabagon

 

Jon Irabagon Quartet
Sem expectativas deverá ser o último concerto do festival, no que toca ao elevado nível da música que iremos ouvir, mas de enorme expectativa quanto ao que iremos ouvir. O quarteto de Irabagon possui várias características singulares, a começar na «origem» dos músicos, mas é inequivocamente o Jazz que os une. Jon Irabagon é a meu ver um dos dois ou três mais espantosos saxofonistas da actualidade, mas que dizer do vulcânico Rudy Royston, do inquieto jovem contrabaixista Yasushi Nakamura, ou enfim do enciclopédico Luis Perdomo que fará as honras da harmonia no quarteto?
Trata-se de um grupo de monstros onde se pode saber onde começa, mas é difícil imaginar como acaba. Pode ser que Jon Irabagon se decida por um repertório inteiramente mainstream, ou pode ser que opte pela modernidade ou o free-jazz. Este será porventura um dos mais tradicionais grupos do saxofonista, marcado em grande medida pela personalidade do pianista, mas todos eles são expoentes máximos dos seus instrumentos, e tudo é expectável.
Um grande concerto em expectativa, imperdível.

Numa altura que as grandes salas, o CCB, a Culturgest e a Casa da Música e os grandes festivais quase ignoram o Jazz ou se demitiram de ter uma programação Jazz própria, restam-nos cada vez menos possibilidades de poder ver e ouvir em Portugal os grandes músicos de Jazz da actualidade como Jon Irabagon, Matt Wilson ou Charles Tolliver. Pois eles estarão em Angra!

 

Sex 29 Angra do Heroísmo Verde Maçã 18.00 Wave Jazz Ensemble  
Sáb 30 Angra do Heroísmo Hotel do Caracol 21.30 Sara Miguel Quarteto  
Dom 1 Out Angra do Heroísmo Cais de Angra 21.30 Wave Jazz Ensemble  
           
Seg 2 Angra do Heroísmo Cais de Angra 21.30 Sara Miguel Quarteto  
Ter 3 Angra do Heroísmo Biblioteca Luís da Silva Ribeiro 21.30 Mano a Mano
«Mano a Mano Vol. 2»
Bruno Santos (g), André Santos (g)
Qua 4 Angra do Heroísmo Verde Maçã 18.00 Mano a Mano
«Mano a Mano Vol. 2»
Bruno Santos (g), André Santos (g)
Angra do Heroísmo Centro Cultural e de Congressos 21.30 Orquestra Angrajazz Claus Nymark (dir), Pedro Moreira (dir)
Baptiste Trotignon & Minimo Garay Duo Baptiste Trotignon (p), Minimo Garay (per)
Qui 5 Angra do Heroísmo Centro Cultural e de Congressos 21.30 Charles Tolliver Tentet
«Celebrating Thelonious Monk Centennial»
Charles Tolliver (dir, t), Kirk Lightsey (p), Devin Starks (ctb), Darrell Green (bat), Josh Evans (t), Stephen Gladeney (st), Todd Bashore (sa), Patience Higgins (sb), Stafford Hunter (trb), Aaron Johnson (tu)
Angra do Heroísmo Casa do Sal 23.00 Wave Jazz Ensemble  
Sex 6 Angra do Heroísmo Verde Maçã 18.00 Sara Miguel Quarteto  
Angra do Heroísmo Centro Cultural e de Congressos 21.30 Ensemble Super Moderne José Pedro Coelho (st, ss), José Soares (sa), Rui Teixeira (sb, clb), Paulo Perfeito (trb), Luis Eurico Costa (g), Carlos Azevedo (p), Miguel Ângelo (ctb), Mário Costa (bat)
Matt Wilson Quartet Matt Wilson (bat), Chris Lightcap (ctb), Jeff Lederer (st, cl), Kirk Knuffke (corn)
Sáb 7 Angra do Heroísmo Cais Angra 18.00 Mano a Mano
«Mano a Mano Vol. 2»
Bruno Santos (g), André Santos (g)
Angra do Heroísmo Centro Cultural e de Congressos 21.30 Yilian Cañizares Quintet Yilian Cañizares (v, voz), Daniel Stawinski (p), David Brito (ctb), Cyril Regamey (bat, per), Inor Sotolongo (per)
Jon Irabagon Quartet Jon Irabagon (s), Luis Perdomo (p), Yasushi Nakamura (ctb), Rudy Royston (bat)

 

(Leonel Santos estará no XIX AngraJazz a convite do festival)